A BIBLIOTECA DOS DIAS
CARLOS NEJAR
A Biblioteca Nacional, no centro do Rio de Janeiro, com sua sonolenta escadaria, era a visitação diária de Simão Tedesco.
Ninguém percebia a obsessão daquele ancião, já fatigado, de óculos com grossas lentas, sempre no meio da tarde, em constante leitura do tomo encadernado, entre gravuras, do volumoso Dom Quixote , de Miguel Cervantes.
-Descobri que me faz recobrar juventude. Como se o destino parasse.
-Destino, este livro?
- Todos o são, de alguma forma. Este, com loucura! E não precisa de mim. Eu é que careço dele para continuar vivendo – acentuou, baixando o tom arrastado da voz, que sumiu.
Juliette não entendeu muito, por que teria que entender? Bastava que as coisas existissem. E se clareavam de repente, parecendo ter vida própria. Igual aos sonhos – pensou. E não são os sonhos nossa oculta medida?
E o velho prosseguiu, tal se caminhasse atrás de si mesmo, ou percorresse algum delírio antigo. Prosseguiu freqüentando a Biblioteca, seguindo solitário e resignado ritual, assentando-se no cativado banco. E estava mais encanecido , com verdor de menino nas pupilas.
Certa ocasião, alguém pediu o engenhoso livro, bem antes. E Simão esperou, esperou, impaciente. Até que o tivesse. 1
Relia, treslia. E as letras avultavam, encantadas. Como se o vetusto livro e a Biblioteca fossem eternos. E uma eternidade viesse de outra. O círculo entre o humano e o divino.
Um dia algo chamou a atenção de Juliette, aproximando-se. Contemplou-o detidamente.
Não se movia. Nem os óculos deixados ao lado. E o tempo estancara no pendular, marcial relógio na parede, acima da cabeça. Dormia sem fim a mão direita sobre a imagem de Dulcinéia.
E a bibliotecária, atônita, não viu se ainda havia infância naqueles olhos. Quando inerte e menineiro era o rosto, inerte o inclinado corpo. Inerte a tarde. E não se deu conta de que a morte, mansa, pode esconder a infância. Ou talvez dali surja apenas outra infância – sucessiva, longeva, inacabável.
E Juliette tomou conhecimento, depois, sobre os restos mortais de Simão Tedesco. Foram diminuindo, diminuindo, a ponto de caberem numa caixa, com a mesma forma, comprimento, largura e altura do livro de Cervantes. Noutra biblioteca, sob a terra.
@Carlos Nejar – poeta, ficcionista e crítico brasileiro. Radicado na “Casa do Vento” , Urca, Rio. Da Academia
Foto tirada por mim em uma das visitas a BN. Posto aqui para que as pessoas possam conhecer, já que esse acesso nem todos podem ter.
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