quarta-feira, 28 de abril de 2010

A BIBLIOTECA DOS DIAS

Achei interessante este conto no site da BN e resolvi postar aqui.

A BIBLIOTECA DOS DIAS



CARLOS NEJAR

A Biblioteca Nacional, no centro do Rio de Janeiro, com sua sonolenta escadaria, era a visitação diária de Simão Tedesco.


Ninguém percebia a obsessão daquele ancião, já fatigado, de óculos com grossas lentas, sempre no meio da tarde, em constante leitura do tomo encadernado, entre gravuras, do volumoso Dom Quixote , de Miguel Cervantes.

Juliette, a jovem bibliotecária, perplexa e curiosa, indagou-lhe, certa vez, sobre a metódica e persistente busca. E ele sorriu, com o braço pousado na página, mostrando a conhecida estampa do Cavaleiro mondego diante dos Moinhos de Vento. E disse:


-Descobri que me faz recobrar juventude. Como se o destino parasse.


-Destino, este livro?

- Todos o são, de alguma forma. Este, com loucura! E não precisa de mim. Eu é que careço dele para continuar vivendo – acentuou, baixando o tom arrastado da voz, que sumiu.


Juliette não entendeu muito, por que teria que entender? Bastava que as coisas existissem. E se clareavam de repente, parecendo ter vida própria. Igual aos sonhos – pensou. E não são os sonhos nossa oculta medida?


E o velho prosseguiu, tal se caminhasse atrás de si mesmo, ou percorresse algum delírio antigo. Prosseguiu freqüentando a Biblioteca, seguindo solitário e resignado ritual, assentando-se no cativado banco. E estava mais encanecido , com verdor de menino nas pupilas.


Certa ocasião, alguém pediu o engenhoso livro, bem antes. E Simão esperou, esperou, impaciente. Até que o tivesse. 1


Relia, treslia. E as letras avultavam, encantadas. Como se o vetusto livro e a Biblioteca fossem eternos. E uma eternidade viesse de outra. O círculo entre o humano e o divino.


Um dia algo chamou a atenção de Juliette, aproximando-se. Contemplou-o detidamente.


Não se movia. Nem os óculos deixados ao lado. E o tempo estancara no pendular, marcial relógio na parede, acima da cabeça. Dormia sem fim a mão direita sobre a imagem de Dulcinéia.


E a bibliotecária, atônita, não viu se ainda havia infância naqueles olhos. Quando inerte e menineiro era o rosto, inerte o inclinado corpo. Inerte a tarde. E não se deu conta de que a morte, mansa, pode esconder a infância. Ou talvez dali surja apenas outra infância – sucessiva, longeva, inacabável.


E Juliette tomou conhecimento, depois, sobre os restos mortais de Simão Tedesco. Foram diminuindo, diminuindo, a ponto de caberem numa caixa, com a mesma forma, comprimento, largura e altura do livro de Cervantes. Noutra biblioteca, sob a terra.



@Carlos Nejar – poeta, ficcionista e crítico brasileiro. Radicado na “Casa do Vento” , Urca, Rio. Da Academia
Foto tirada por mim em uma das visitas a BN. Posto aqui para que as pessoas possam conhecer, já que esse acesso nem todos podem ter.

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